quinta-feira, 16 de maio de 2024

Carta ao SBAT


Caros senhores da SBAT,

um amigo roteirista, o Wagner, me mostrou a revista com o texto de vocês, sobre a crítica. Tenho uma relação bastante engraçada com o Wagner: nunca o conheci pessoalmente, mas passamos por muitas aventuras juntos. Nos conhecemos num grupo virtual de literatura e chegamos a ser, juntos, moderadores de um grupo de política, aonde exercíamos, por assim dizer, uma função de críticos ou de censores, moderando os assuntos discutidos.

Após isso, revisamos muitos textos um do outro: ele revisou alguns contos e trechos do meu romance, e eu revisei e ajudei a corrigir um roteiro dele, ainda em criação, sobre a vida do saudoso Nelson Rodrigues. Wagner é um cara ainda mais excepcional, por mesmo ter tido a própria casa alagada nas recentes enchentes no Rio de Janeiro, e estar procurando um emprego no serviço público, ainda encontra não sei onde tempo para participar da tentativa de reerguer sua entidade, colaborando com o processo de reconstrução da SBAT. Eu li com muita atenção a entrevista, e encontrei variados pontos em comum com minha própria carreira artística.

Li desde cedo variados autores, como Umberto Eco, Machado de Assis, José de Alencar e outros. O Nome da Rosa, com seus enormes diálogos sobre literatura medieval, plantaram em mim a semente da curiosidade sobre a literatura. Também pude ler autores políticos e filosóficos variados, como Lênin, George Orwell e Nietzsche, que opinavam de forma bastante contundente sobre a arte de sua época, pois faziam essa crítica de forma a levantar também suas opiniões filosóficase políticas.

De especial importância são os textos de Orwell nesse assunto. Não os lembro de cabeça para poder citá-los, mas eles tinham um elogio a chamada cultura de massa, que antecedeu o que se fez depois. Ainda que tenha sido inventor do termo ‘’prolefeed’’, usado para designar enlatados da pior espécie, Orwell chamava atenção para que obras populares não devem ser desprezadas, pois fazem parte do referencial comum mesmo dos críticos de nariz mais empinado, ainda que eles não queiram admitir. Poderia ser interpretado que não é um bom esforço buscar atacar a cultura de massa como maneira de se mostrar superior, mas sim aprender com ela para se aprimorar como escritor.

Já Nietzsche, anos antes, buscava uma cultura que atingisse o sublime na sua forma mais pura, algo que ele achou que teria encontrado em Wagner. Ele criticava vários autores alemães como vazios ou pequeno-burgueses, e exaltava Wagner em contraposição a isso, até que começou a perceber em Wagner o mesmo calculismo pequeno-burguês que via nos outros. Então, nos estágios finais de sua loucura, dirigiu um ataque pesado contra Wagner, que pelo que sei, foi amplamente ignorado. Ele foi útil durante a ascensão de Wagner, seu aplauso sendo contado na ascensão do autor, e quando Wagner, já estabelecido, começou a revelar o pior de seu caráter, sua palavra não teve mais efeito algum: ele se tornou um apito mudo.

Maior efeito tiveram os trabalhos de crítica feitos por Lênin e Trotsky durante a Revolução Russa. Esses ensaios esparsos, que no caso de Trostky, chegaram a gerar um livro inteiro, não eram um mero passatempo para eles, mas serviam de maneira a discutir questões nacionais muito maiores. Digna de nota é a posição de ambos em relação a arte. Embora desde aquela época houvesse uma cruel perseguição contra opositores pela polícia secreta, eles advogavam que não devia se impor uma arte socialista única, mas permitir o livre experimentalismo por parte dos artistas, para que eles mesmos, através de seus grupos e coletivos, descobrissem as melhores formas de expressão. Essa liberdade durou mais ou menos até o começo dos anos 30, quando, após Stálin assumir, se impôs ferreamente uma nova arte que tentava imitar pateticamente os estilos clássicos.

Durante minha faculdade, tive contato com Harold Bloom. Li a Ansiedade da Influência, e achei maravilhosa a maneira que ele definia que cada autor tentava se afirmar em relação a um Cânone estabelecido. Porém, percebia nele certas coisas desagradáveis, que o impediam de avançar. Ele tinha criado um termo chamado ‘’Escola do Ressentimento’’, que era um antecessor do que viria a se chamar de ‘’identitarismo’’, ou ‘’esquerda woke’’. Essa ‘’Escola do Ressentimento’’ , como ele chamava, podia incluir qualquer um que não defendesse ferreamente os clássicos e seguisse teóricos que ele não levava a sério, o que incluía praticamente qualquer pensador do século XX em diante, com exceção dos poucos que ele gostava. Eu fiquei especialmente impactado pela maneira que ele descrevia JK Rowling.

Ele falava da escrita dela da forma mais pejorativa possível, como se ela não tivesse mérito algum. Esse era um ataque ainda mais cruel do que a ‘’esquerda woke’’ veio a fazer contra ela quando ela assumiu posições transfóbicas. Pode se presumir que Bloom devia ter posições semelhantes contra Stephen King, Tom Clancy, Agatha Christie, ou qualquer outro autor que as pessoas gostem sem autorização dele. Apesar de respeitar o trabalho dele, acredito que o fanatismo dele em relação ao que chamava de Cânone acabava sendo repressivo e contraproducente.

Tive algum pouco contato com o trabalho de Roger Ebert e Rubens Ewald Filho. Pelo que lembro, eram dois homens de grande erudição e que buscavam fazer comentários equilibrados, e que além disso tentavam achar alguma coisa que desse para elogiar mesmo nos piores filmes. Li citações de Ebert na internet, e percebi que ele tinha um humor bastante sarcástico para resumir alguns dos filmes que criticava, fossem bons ou ruins. O trabalho dele é muito lembrado nos Estados Unidos até hoje, assim como o de Ewald é em nosso país.

Terminando esta carta, gostaria de citar uma obra muito interessante: ‘’Tudo que é sólido desmancha no ar’’, de Marshall Bermann. Assim como Lenin, Trostky, e Nietzche, ele executou nessa obra um trabalho de crítica literária, que tinha por fim ser muito mais do que crítica literária. Ele falou ali sobre a construção da identidade moderna, comentando sobre o Fausto de Goethe, sobre literatura russa, sobre arquitetos americanos, e variados outros temas. Li esse livro durante meu ensino médio, e o devorei com muito interesse.

O tema central do livro, acredito, é a identidade faustiana da pessoa moderna, um tema levantado anteriormente por Spengler, um autor alemão, que acredito o tomou de Nietzsche e Schopenhauer. A luta central do ser faustiano é que apesar de viver numa sociedade motivada pelo lucro ou pelo fetiche do poder que o lucro encarna, ele deseja sinceramente fazer o bem, porém esse bem acaba sendo infectado pela busca do lucro, o Mefistófeles que tenta levar Fausto ao inferno. Nossa sociedade sendo movida por essa contradição, boa parte de nosso romance moderno se tornou tomada por esse tema, algo que o crítico deveria levar em consideração.

Terminando aqui, gostaria de parabenizar a entidade pelos seus anos de trabalho, e agradecer pelos seu esforço em prol da cultura nacional. Se vocês contam com um amigo como o Wagner (o nosso Wagner, não o do Nietzsche!), é porque o que vocês estão fazendo vale a pena.

Grande abraço, e saudações,

Nicolas Oliver

sábado, 2 de março de 2024

1xy. Quixote



1xy. Quixote

Eu conheci algumas pessoas que são como Dom Quixote. São cavaleiros de causas perdidas, eternamente lutando contra moinhos de vento. 

Quando militei no Rede, conheci um senhor, que tinha passado mais de 20 anos no movimento estudantil, e depois saiu dele para passar mais 30 nos movimentos sociais e ambiental. Ele tinha uma fé genuína em Marina Silva. Nós coletamos assinaturas juntos, para a fundação do seu partido.

Eu fui ver comícios de Marina. Num comício ela falou que Bolsonaro só fazia o que fazia porque Lula permitia ele estar na base aliada, e outro comício ela disse que Marcos Feliciano era mal compreendido por ser evangélico. Ao ser avisado disso, rasguei todas as fichas de assinatura e nunca mais fui numa reunião do partido. Fiquei sabendo que esse senhorzinho tinha saído em campanha para vereador, e outro membro do partido tinha pego os santinhos dele e escondido num galpão no fim da cidade. Nenhum dos dois foi eleito, com santinho ou não. Marina terminou de enterrar sua possível carreira apoiando Aécio. 

Outro senhor que conheci, era candidato a vereador desde pelo menos a época de Sarney. O politico que ele apoiava gostava muito dele, mas ele tinha um pequeno defeito: não fazia nem aceitava qualquer tipo de caixa 2 ou movimentação irregular de dinheiro, nem tampouco comprava votos. Seu próprio partido não o impedia de se candidatar, mas entregava a menor quantidade de santinhos possível no último dia possível. Evidentemente, isso não ajudava muito as campanhas dele a enfrentarem os candidatos mais bem financiados do bairro. 

Anos antes de conhecer esses senhores, quando eu era adolescente, conheci um técnico de conserto de geladeiras, que queria que eu propusesse a meus professores na escola técnica, a ideia de um motor que conseguisse girar para sempre sem nunca parar. Eu não entendia das leis de Newton, mas intuía que isso era impossível porque se fosse possível, alguma empresa já teria feito e patenteado. Toda vez que eu passava por esse técnico, prometia falar com os professores, e nunca falava até ele desistir. Ele provavelmente deve ter procurado outro jovem para tentar levar sua ideia. Que deve ter feito com ele a mesma coisa que eu fiz. 

O interessante é que essas pessoas não são pontos abaixo da curva: elas geralmente administram todo o resto de sua vida bem, mas tem uma mania específica que eles ficam teimando por mais que não vingue. Isso é a junção da esperança e do esforço, porém sem o método. O problema do método, é claro, é que ele acaba trazendo desencanto. O amador que é bom na liga amadora, talvez fosse menos feliz se não conseguisse alcançar o top 20 da liga profissional. Então, ele não abre os olhos para o desencanto, e permanece bom. 

sábado, 13 de janeiro de 2024

No PIBID

Me inscrevi para o PIBID em 2014. Naquela época, eu já estava começando a ficar desesperado por bolsas estudantis. Tinha falhado em variadas tentativas de arranjar emprego, e fazia alguns meses que já tinha sido dispensado do estágio no Instituto Federal. A chamada do PIBID tinha sido quase uma questão de sorte. Poucos estudantes tinham podido se inscrever para o programa devido ao fato, de mesmo entre as poucas pessoas que iam sobrando no curso a cada ano, boa parte precisar trabalhar ou fazer outras atividades durante o turno da manhã. Ainda assim, entre esses, eu era o menos qualificado, devido ao meu histórico escolar bastante pífio e confuso, e por isso fiquei na reserva da última vaga durante quase um ano, até uma das pessoas que participavam ficar doente e precisar sair para se recuperar. Esse fato, que era quase azar devido ao que ocorreu com a colega que saiu, antecedeu outra questão de sorte, pois devido a crise econômica e cortes de gastos que estavam ocorrendo no governo em todos os níveis, a entidade mantenedora das bolsas científicas ter congelado todos os planos de adicionar novos estagiários até a economia se normalizar, ou seja, provavelmente quando eu já estivesse com um pós-doutorado em outra graduação.

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Minha entrada se deu pouco antes da realização de uma evento do PIBID na faculdade, da qual participei como ouvinte, reconhecendo vários colegas de outros espaços e até mesmo alguns bons amigos. Lá, pude conhecer alguns detalhes do programa, do qual só ouvia falar, mas nunca soubera como de fato funcionava. Professora P. era a Coordenadora do programa para nosso curso, estando em contato com a CAPES, nossa mantenedora; nossa Supervisora, em cujas aulas deveríamos participar como assistentes de classe, era a Professora C., do quadro da Instituição que estávamos lotados, o Colégio Municipal JB. Tivemos algumas reuniões prévias, nas quais me encontrei com os colegas que já estavam há mais tempo no Programa, e ficou definido que eu ficaria lotado junto com Roberto, no lugar da colega que tinha ficado doente, assistindo na primeira aula, do 8o Ano; outras duas colegas da minha turma na faculdade, Pauline e Tábata, eram responsáveis pela segunda aula, no 9o Ano. Logo no primeiro dia de aula, pude perceber bastante semelhança entre aquele lugar e minha experiência como bedel escolar pelo REDA, num escola estadual da Pituba. Ambos eram pequenas escolas situadas em ruas secundárias, com um corpo de alunos vindo essencialmente das classes populares. Em ambas eu entrava vindo também de situações profissionais críticas: no REDA, por querer ter dinheiro para estar na faculdade, e ter desculpa para sair de um curso profissionalizante que não desejava terminar, no PIBID, após algum tempo matando cachorro a grito após o fim do estágio.

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A diferença, logo percebida, era a de que se os alunos eram mais jovens nessa nova escola, eram muito mais difíceis de controlar, devido a alguns fatores que logo se fizeram perceber. Durante a atividade específica de teatro, parei para supervisionar os grupos de alunos. Quando parei para supervisionar um dos grupos de meninos, eles me pediram para fazer gestos e símbolos corporais, cujo significado eu desconhecia mas intuí serem símbolos de gangues. Eles foram bastante insistentes para que eu fizesse os símbolos, algo do qual tentei me esquivar com não menos insistência, vendo que alguns deles sacavam os celulares para tirarem fotos. Indaguei a eles, discretamente se a escola era da ''Caveira'' ou do ''Escorpião'', e um deles me disse que o bonde da escola era afiliado ao Caveira. Tremi por dentro. Numa viagem a Natal, no começo do ano, tinha comprado um chaveiro de gosto bastante duvidoso, que consistia num pequeno escorpião empalhado em resina plástica verde fosforescente, e decidi não usá-lo em Salvador justamente devido a possível conotação perigosa que poderia ter em nossas ruas.

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Mais tarde, algo mais positivo: uma aluna, Karine, e um aluno, Pedro, pareciam ter uma inclinação para o desenho, pois ficavam desenhando em sala o que me pareceram croquis de moda. Na saída da aula, quando questionei a Pedro se eles estavam de fato fazendo o que eu pensava, ele desconversou dizendo serem desenhos comuns. Pedro é um tanto achacado pelos colegas por, segundo eles, ser gay. Na reunião de avaliação daquele dia, compartilhamos nossas impressões. Profa. C. achou muito positivo eu ter percebido o gosto de Pedro e Karine; ela me perguntou se seria possível fazermos algo em relação a isto. Eu disse que meu irmão tinha formação em design gráfico e que, se conseguíssemos escanear alguns trabalhos de Karine e Pedro, eu talvez conseguisse pedir ao meu irmão que realizasse algumas pequenas animações ou melhorias gráficas neles, para uso em atividades de classe. Algumas aulas depois, fui informado de que Pedro e outros dois alunos tiveram de ser transferidos as pressas para outras escolas depois de terem recebido avisos de que ''seria melhor estudarem no bairro certo para eles.''

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Cheguei quando estava sendo realizada a ''formatura'' dos alunos para se cantar o Hino Nacional: é uma das primeiras escolas em que estive em que se realiza tal procedimento. A diretora o usa como uma tentativa de instilar alguma disciplina e senso de ordem nos alunos, algo que percebi desde o primeiro dia não ser muito efetivo, visto que eles até chegam a ficar em fila e acompanhar alguns trechos do Hino, mas porém não dão a mínima para aparentar algum acatamento á solenidade da ocasião. O desafio, ou mais exatamente o pouco caso dos alunos, com a autoridade dos professores e da Diretoria é uma constante. A diretora constantemente é chamada ou sobe as salas para resolver questões para as quais o poder dos professores é insuficiente; mesmo quando um professor é incisivo ou enérgico com um aluno ou grupo de alunos específico, geralmente o único efeito disso é aumentar ainda mais a balbúrdia do resto da sala. Os alunos tem uma cultura própria que operam largamente apesar da escola, que parecem considerar mais como um lugar aonde os pais exigem deles que fiquem um determinado período do dia do que de fato como um lugar aonde possam aprender qualquer coisa. Era um sentimento que eu próprio possuía até mesmo em relação a faculdade, mas nessas crianças, que são basicamente da geração posterior a minha, ou na verdade do século e milênio diretamente seguintes, esse sentimento parece ser uma das motivações principais, comprovando o que li no livro ''A Nova Era Convergente'', de Takeshi Imai: ''- Anos 2000: As pessoas não tolerarão nem sequer mais pensar em obedecer.'' Há, também, uma certa falta de empatia com a Direção da escola, mesmo quando ela tenta motivá-los ao invés de contê-los: pouco após o Hino, a diretora tentou falar com os alunos sobre um fato ocorrido no dia anterior, que foi o triunfo dos garotos Lucas e Orelha no programa musical ''Super Star'', veiculado na Rede Globo. A diretora tentou mostrar a eles que Lucas e Orelha vieram de histórias de vida talvez mais difíceis que as deles, mas que ainda assim, querendo algo diferente e se dedicando muito, eles tinham conseguido a vitória que obteram. A diretora disse a eles que a escola oferecia atividades extracurriculares que, ainda que não transformassem nenhum deles em outros Lucas e Orelhas, permitiriam a eles desfrutarem de algo diferente do que ''aparentava ser o mais fácil.'' Os alunos escutaram, resignados, mas pareceram dar tanta importância ao que ela dizia quanto tinham dado ao Hino.

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Algumas semanas antes, quando eu estava na sala dos professores, lendo um jornal após minha atividade, um dos professores, ao conversar comigo, me felicitou por eu ter escolhido o curso que escolhi, e falou que não faria, se tivesse minha idade de novo, um curso voltado ao ensino.

''-Os jovens de hoje não querem saber de nada. O modelo de vencer na vida que eles tem hoje são os traficantes.-''

Não tive resposta para o que aquelas palavras. Quando subimos para a sala, a Profa. C. , após uma rápida atividade de ditado, realizou com os alunos a atividade do roleplay. Sendo filmados com uma câmera que a Profa. tinha trazido, eles encenaram, utilizando as cadeiras da sala de forma a simular um ônibus qualquer de Salvador, os roteiros que tinham redigido na aula anterior. Foram variados grupos, cada um encenando pequenas esquetes sobre situações erradas praticadas por algumas pessoas em coletivos. Nessa atividade, a necessidade da professora controlar a sala foi muito menor: até mesmo os alunos conhecidos por serem os mais irrequietos, estavam demonstrando um bom engajamento na atividade. A professora me passou uma câmera filmadora para filmar cada esquete para depois as gravações serem editadas, e provavelmente transformadas num pequeno filme. Para tentar simular um tripé fixo segurando a câmera, me ajoelhei diante da mesa e pus meus cotovelos apoiados no tampo, enquanto eu a segurava filmando os alunos realizando suas apresentações. Mais ou menos na segunda esquete, um dos alunos pediu para poder filmar também. Olhei para a professora pedindo confirmação: ela foi um tanto reticente, mas não chegou a dar um não definitivo; a câmera era fácil de operar e a chance de ser perder qualquer filmagem era pequena, mas ela não estava muito a fim de arriscar uma queda do equipamento. Quanto a mim, não considerei que aquilo fizesse muita diferença, e continuei a filmar, com o aluno ao meu lado. Quando estávamos nas últimas esquetes, percebi meu erro; debatia o tempo todo sobre empoderamento na internet e na faculdade, mas quando um aluno fez uma requisição simples para mim, eu não percebi que bastaria ficar ao lado da câmera para evitar que ele a deixasse cair, ou que outro aluno, querendo filmar também, acabasse empurrando-a sem querer ou causando a deleção do material filmado; quando fiz a oferta, o aluno, ressabiado, a recusou. Eu tinha jogado fora a chance de deixar acontecer na prática o que debatia tanto em teoria, e se aquele garoto se tornasse um cameraman da Globo ou do National Geographic mais tarde, não teria muito a me agradecer.

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Pouco tempo depois daquilo, eu tinha passado num concurso para trabalhar no interior. Eu estava insatisfeito com a faculdade não apresentar nenhum futuro profissional para mim, e desisti completamente do curso, o que significava abrir mão da vaga no PIBID. Apresentei a situação a Professora P., e ela me deu o formulário de desistência. Eu tinha apresentado a ela e a C. , um projeto que consistia em parte do presente texto como relato de experiência, que não foi aceito. Meu projeto não envolvia nenhuma proposta de ensino e apenas mostrava algo que já era óbvio. Eu apenas não consegui raciocinar como conseguir fingir estar ensinando alguma coisa para aquelas crianças, visto que nossa presença ali não estava adicionando efetivamente nada ao nada que elas já tinham. Poucos anos depois, quando passei em frente a escola, me disseram que ela tinha sido fechada. O municipio basicamente tinha desistidio de manter o que tinha se tornado um ponto de recrutamento do tráfico, aonde o governo só mandava da sala da diretora e dos professores para dentro. Minha saída daquela escola, para mim, foi uma das primeiras vezes que senti que falhei com quem podia ajudar, antes de eu aprender, anos depois, que existem muitos grandes problemas e não dá para abraçar o mundo.

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Porém, ainda assim me lembro de outra coisa positiva: quando levei um colega do curso de Vernáculas para declamar poesia. Ele era o líder informal do coletivo cultural que eu participava na faculdade. Vinha de uma comunidade, e tinha toda uma ideologia baseada nisso. Eu o tinha convidado para participar de uma das aulas, e ele foi, sem me pedir sequer o dinheiro do ônibus. Ele declamou uma de suas composições, e foi um dos poucos momentos que os alunos sequer pararam para prestar atenção em alguém naquela escola. Minha intenção era apenas trazer alguém para fazer o trabalho por mim e me poupar de planejar mais uma aula, mas os alunos acabaram ganhando muito mais do que isso. Acredito que meu colega conseguiu o que a diretora não vinha conseguindo, mostrar que um deles poderia chegar em algum lugar. Ele terminou a apresentação e foi pra casa, acreditando estar cumprindo uma missão com os seus. O que ele fez sozinho não impediu a escola de ser fechada, é claro, mas ainda assim ele veio tentar. Eu estava a poucos meses de desistir da escola e da faculdade por um emprego que eu achava que ia dar prumo em minha vida, mas essa teimosia me marcou. Me fez ver que vale a pena ficar pelo que vale a pena. 

 

sábado, 30 de dezembro de 2023

1xy. Questões do mundo



Leia-se o excerto abaixo, sobre o cientista alemão Emil du Bois-Reymond:

‘’Em 1880, Emil du Bois-Reymond fez um discurso na Academia de Ciências de Berlim enumerando sete "enigmas mundiais" ou "deficiências" da ciência:

1. A natureza última da matéria e da força;

2: A origem do movimento;

3: A origem da vida;

4: Os “arranjos aparentemente teleológicos da natureza” (não um “enigma absolutamente transcendente”);

5: A origem das sensações simples (uma questão bastante transcendente);

6: A origem do pensamento e da linguagem inteligentes (que poderiam ser conhecidos se a origem das sensações pudesse ser conhecida); e

7: A questão do livre arbítrio.

Em relação aos números 1, 2 e 5 ele proclamou “Ignorabimus” (“nunca saberemos”). Em relação ao número 7 ele proclamou "Dubitemus" ("duvidamos")’’

Vejamos como estão as respostas para cada questão. Em relação a questão um, cada vez mais a física avança em descobrir partículas cada vez mais elementares, caminho que seguirão nas próximas décadas. Quando a teoria do Campo Unificado for completada, é possível que essa questão receba uma resposta final.

Em relação a questão 2, acredito que se relaciona com a questão um, ou talvez ele tenha falado da causa motora original que pôs em movimento tudo que se move no Universo até agora. Isso é algo que também poderá ser respondido quando a física avançar mais.

 Sobre a questão 3, da origem da vida, pelo que sei as especulações sobre formação de cadeias genéticas continuam avançando. Só não se sabe se a vida surgiu espontaneamente em nosso planeta, ou veio de algum meteoro após surgir de alguma maneira em outro lugar.

É uma questão que agora é especulativa, mas que no futuro pode se tornar um problema elementar. A questão 4 pode levar a todo tipo de interpretações, desde a Teoria Gaia a pensamentos teológicos, variando de acordo com o tipo de interpretação filosófica que se dê a ela. Tudo pode ter um motivo ou destino, ou não ter destino nenhum. É possível, por exemplo, ver filmes como Parque dos Dinossauros e Blade Runner, e acreditar que Deus e a Natureza tem uma vontade que vai além do que o homem deseja, ou perceber que desejamos ver padrões onde até existem certas leis e imperativos, mas também muita aleatoriedade.

A questão 5 se encaixa na questão da origem da vida e de suas interações. As sensações são importantes no homem porque são parte da maneira que ele forma julgamentos filosóficos, e por isso ele tem tanto interesse em conhecê-las e medi-las.

A questão 6 se encontra sendo respondida por biólogos, neuro-geneticistas, psicólogos evolutivos, e vários outros cientistas, que estudaram várias maneiras do porquê nosso tipo de inteligência se tornou vantajoso para nossa espécie.

A questão 7, do livre arbítrio, é de suma importância atualmente, porque define nossa personalidade e responsabilidade legal. Ao mesmo tempo que se está pondo em questão se o livre arbítrio existe ou é tão livre assim, sendo frutos de compulsões biológicas e pressões socioculturais, também se está questionando o quanto de nossa personalidade pode se manter diante de propaganda e vigilância pervasivos.

Assim, acredito que avançamos bastante em relação á época do sr. du-Bois, mas também estamos diante de uma nova fronteira, que temos que saber como atravessar.

domingo, 24 de dezembro de 2023

Poema de Natal



Santa

Papai Noel e o Krampus,

Brincam de tira bom, tira mau,

Com as crianças do mundo

Papai Noel até mesmo aceitou

Que o NORAD usasse o nariz do Rudolph

Para calibrar a mira dos mísseis.

E até mesmo engordou,

Depois que deixou a Coca-Cola,

Usar seus direitos de imagem.

Ele é um bom trabalhador:

Em cada shopping que vai,

Recebe bem as pessoas,

Promete ler as cartinhas,

Depois pega o ônibus de volta,

Para sua vida de sempre.

Mas existe aí um segredo:

Há um mundo paralelo,

Em que é Natal no mês contrário,

E o Krampus é o cara bom,

Papai Noel o malvado.

Neste mundo ninguém fica reclamando

Que o Krampus Noel virou um deus pagão

E tomou o lugar do verdadeiro Deus

Ou que o que era pra ser uma festa sagrada,

Se tornou uma desculpa para encher a burra de chester,

E ficar travado de champanhe e de sidra.

As pessoas bebem até desmaiar,

Porque gostam de beber até desmaiar,

Bebem, desmaiam, acordam com ressaca e pronto.

Trocam presentes porque gostam de trocar presentes e ajudar a movimentar a economia e criar empregos,

E mandam fuzilar sem direito a apelação quem reclama

que não se deveria comemorar algo que não se sabe a data exata,

Porque todo mundo sabe que ninguém está nem aí para a data exata de nada,

E tampouco quer saber nem pesquisar se as festas são comerciais ou pagãs,

Porque o que interessa é comemorar estar vivo e não fazer auditoria nem historiografia.

Krampus Noel, quando desce as chaminés,

Não deixa carvão para as más crianças,

E doces para as boas:

Não deixa doces para nenhuma delas,

Porque doce dá cáries, e promove obesidade e diabetes.

Ele deixa, isso sim, com seus responsáveis,

Talões para trocar por sacos de carvão,

Pois há muitas famílias pobres,

Com pais seja maus seja bons,

Que não tem dinheiro para pagar pelo aquecimento.

Se uma criança manda cartinha pedindo

Por presentes mais caros que seus pais possam lhe ajudar a levar,

Ele manda uma resposta educada:

Você estava sendo bom porque é bom,

Ou estava se fingindo de bom,

Para fazer sua família se matar de trabalhar,

Para te dar um brinquedo igual ao de seus colegas de escola mais ricos?

Eles sabem que você não tem dinheiro para ir em Fernando de Noronha nem para a Disney com eles,

Então vale a pena fazer seus pais sofrerem

Para os outros meninos fingirem que te aceitam quando muito por duas semanas?

Peça um brinquedo que te faça realmente feliz e te permita brincar com as crianças de seu bairro.

Sua família já sofre muito para te manter na mesma escola depois de ter quase falido por causa de seu tio Gustavo, cujo filho, uma criança cretina igual ao pai, tem brinquedos bons porque a família dele rouba famílias como a sua.

Com amor, Krampus Noel.

Nesse mundo, nenhuma criança boa se acha melhor do que é.

As más, salvo casos de mau caráter congênito,

logo se esforçam para se tornar pelo menos razoáveis.

O nosso Papai Noel, lá,

não maltrata ninguém como se poderia esperar:

Ele é lá o que é aqui,

Mas quase ninguém o leva a sério,

O que o permite descansar para vir ao nosso mundo,

Exercer a bondade que vemos no fim de ano,

Nos shoppings, nos abrigos, nas sarjetas, e nas confraternizações corporativas.

Já o Krampus?

Para ajudar seu amigo Noel a ser bom,

Aqui faz o mal,

Para parecendo ser um fazedor do bem,

O outro ser o Papai Noel que gostamos.

Hohoho!

 

Nicolas Rosa

sexta-feira, 22 de dezembro de 2023

Master of Orion


Minha primeira experiência com Master of Orion foi há alguns anos, quando eu, quebrado como sempre, procurava jogos gratuitos na internet. Achei uma alternativa que não era pirataria: um site de jogos abandonware, cujos direitos tinham sido há muito tempo deixados para trás para suas produtoras. Achei joias maravilhosas em meio a eles, inclusive o primeiro Master of Orion. Esse jogo foi um dos primeiros 4X, surgindo na época de Civilization e Sid Meier´s Pirates, que também tive oportunidade de jogar.

Ele rodava num emulador Dosbox, que o site também tinha para baixar. Cada seção de jogo era única. Você definia os parâmetros de uma galáxia, quantas raças haveria nela, e então o jogo gerava um cenário de acordo com isso, que variava ainda mais graças a eventos aleatórios que davam ainda mais sabor ao jogo.

Cada raça tinha características próprias, como talento para a espionagem, diplomacia no caso dos humanos, habilidade com naves, maior fertilidade etc. o que tornava o jogo meio quebrado era que ter avanços nas pesquisas dava vantagens enormes em quase todo o resto, o que fazia os Psylons saírem na frente em quase todos os cenários que estivessem presentes.

O que era comum a todas as galáxias geradas, e que na parte central de uma delas, haveria sempre uma nave superpoderosa, que atacava qualquer um que se aproximasse dela. Quem a tirasse do caminho poderia conquistar o planeta título do jogo, Orion, que tinha artefatos raros que davam vantagens ao seu possuidor.

O jogo fazia referências a várias obras de ficção científica nos nomes das armas e itens destravados à medida que se avançava na árvore tecnológica, quando se obtinham equipamentos capazes de destroçar armadas e planetas inteiros com poucos ataques. Antes de chegar a esse nível, porém, havia algo a se olhar: o jogo tinha uma interação política muito bem programada onde você realizava comércio e trocava tecnologias com outras raças, e um Senado Galático onde poderia se vencer o jogo sendo eleito líder da Galáxia.

Se você fosse eleito, vitória imediata. Se um rival fosse eleito, você poderia aceitar a supremacia dele ou tentar desafiar todo o resto da Galáxia sozinho, numa batalha bastante ingrata e com pouca chance de vitória. O primeiro MoO tinha algo um tanto pesado, devido ao fato de só ser possível conquistar planetas exterminando a população inteira presente nele.

Os títulos posteriores se tornaram mais complexos, adicionando além da possibilidade de criar raças novas, tomar populações diferentes ao seu Império, tendo que administrar seus diferentes gostos e inclinações. Eu joguei o novo MoO e não fui muito longe nele, achando o MoO antigo mais simples e direto.

Ele tinha algumas sacadas maravilhosas, a exemplo do cuidado com a ecologia. Ele possuía diferentes tipos de planetas a serem colonizados, alguns com mais minerais, outros intermediários, outros com uma natureza mais abundante. Os planetas com mais minerais possibilitavam uma indústria mais próspera, e os com boa natureza permitiam a população se multiplicar mais.

Quanto mais indústria você tivesse, mais créditos você teria para construir seu Império, mas a indústria gerava poluição que afetava negativamente a população, que administrava as indústrias. Você tinha que manter em cada planeta um equilíbrio entre produção industrial e cuidados ecológicos para possibilitar sua população e indústria crescerem ao mesmo tempo. Deixar essa relação desequilibrada ao ponto de se gerar poluição quase nunca compensava. Quando pesquisas eram realizadas, você podia investir em terraformagem que aprimorava os biomas de cada planeta, ao ponto de transformar desertos radioativos em florestas verdejantes com o tempo.

Era maravilhoso ver cada planeta evoluindo a ponto de poder receber sua população máxima, cheio de indústrias que não geravam quase nenhuma poluição. A relação com os outros Imperadores era algo que também se evoluía com o tempo: quase sempre compensava estar em boas relações para fazer comércio com todo mundo que se pudesse, mas a gente ia aprendendo que tinha tecnologias que não valia a pena trocar por nada porque davam a eles grandes vantagens em troca de muito pouco.

Quase igual a gente tem que fazer na vida real com outras pessoas. Resumindo tudo: o antigo MoO é uma experiência sem igual, que vale cada hora investida nele, pois é um clássico que não envelhece e tem muito a ensinar. Quer você queira aprender sobre gestão, quer sobre criação de jogos, quer sobre ecologia e relações políticas, jogar algumas partidas de MoO vão te mostrar que com simplicidade e solidez, se chega longe.







 


domingo, 3 de dezembro de 2023

Sobre Lampião e outras figuras


L: Gente, uma senhora, amiga de minha esposa, me presenteou com esse livro. Acho que ela quer me doutrinar. Alguém aí já leu?

D: Isso só pode acontecer em um país que ainda respira um pouco de democracia, se fosse um país com a ditadura explícita, jamais um livro desses seria publicado.

N: É uma questão espinhosa. A esquerda tenta construir uma narrativa fajuta em torno do cangaço e de Canudos, como se Lampião e outros cangaceiros fossem precursores de Che Guevara, e Canudos uma espécie de comuna socialista libertária.

L: Entendo a complexidade. Mas confesso que tenho um preconceito com esse cidadão: o fato de ter no currículo ''Os Pingos nos is'' e Olavo de Carvalho na lista de referências turva meu julgamento. Vou tentar ler, não sei quando. Depois comento por aqui.

N: Tipo man... vou te confessar: é literatura merda no estilo de Pondé. ''Guia babacamente incorreto de apontar dedo na cara da esquerda e dizer mitei'' O cara desmitifica Lampião, Conselheiro, Zumbi, Caramuru, etc... mas nunca vai deixar tocarem no Borba Gato e no Carlos Lacerda. É o tipo de critiquinha bem hipócrita e escrota, feita pra sulista se achar mais civilizado. Eu acho Lampião um m*rda, mas entendo isso como nordestino que não precisa dele tendo figuras melhores. Agora um sulista vir dizer isso eu mando logo se f%d#r.

L: O que acho temeroso é quando sentenciam, quando querem explicar uma situação complexa com simplificações.

N: A gente teve figuras como Jesuíno Brilhante, Cipriano Barata, Luiz Gama, entre outros, que ainda assim os sulistas iam falar mal se a gente exaltasse. Aí atacam Lampião porque sabem que nosso orgulho é ligado a ele. O problema pra eles não é o que Lampião fez, é a gente ser feliz com alguma coisa. Não dou atenção pra esses vermes. Se puder, pegue o livro e deixe de comprar papel higiênico por um tempo, se é que você me entende. Esse tipo de material só presta pra isso.

Redação CBMBA- Tecnologia

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