quinta-feira, 16 de maio de 2024

Carta ao SBAT


Caros senhores da SBAT,

um amigo roteirista, o Wagner, me mostrou a revista com o texto de vocês, sobre a crítica. Tenho uma relação bastante engraçada com o Wagner: nunca o conheci pessoalmente, mas passamos por muitas aventuras juntos. Nos conhecemos num grupo virtual de literatura e chegamos a ser, juntos, moderadores de um grupo de política, aonde exercíamos, por assim dizer, uma função de críticos ou de censores, moderando os assuntos discutidos.

Após isso, revisamos muitos textos um do outro: ele revisou alguns contos e trechos do meu romance, e eu revisei e ajudei a corrigir um roteiro dele, ainda em criação, sobre a vida do saudoso Nelson Rodrigues. Wagner é um cara ainda mais excepcional, por mesmo ter tido a própria casa alagada nas recentes enchentes no Rio de Janeiro, e estar procurando um emprego no serviço público, ainda encontra não sei onde tempo para participar da tentativa de reerguer sua entidade, colaborando com o processo de reconstrução da SBAT. Eu li com muita atenção a entrevista, e encontrei variados pontos em comum com minha própria carreira artística.

Li desde cedo variados autores, como Umberto Eco, Machado de Assis, José de Alencar e outros. O Nome da Rosa, com seus enormes diálogos sobre literatura medieval, plantaram em mim a semente da curiosidade sobre a literatura. Também pude ler autores políticos e filosóficos variados, como Lênin, George Orwell e Nietzsche, que opinavam de forma bastante contundente sobre a arte de sua época, pois faziam essa crítica de forma a levantar também suas opiniões filosóficase políticas.

De especial importância são os textos de Orwell nesse assunto. Não os lembro de cabeça para poder citá-los, mas eles tinham um elogio a chamada cultura de massa, que antecedeu o que se fez depois. Ainda que tenha sido inventor do termo ‘’prolefeed’’, usado para designar enlatados da pior espécie, Orwell chamava atenção para que obras populares não devem ser desprezadas, pois fazem parte do referencial comum mesmo dos críticos de nariz mais empinado, ainda que eles não queiram admitir. Poderia ser interpretado que não é um bom esforço buscar atacar a cultura de massa como maneira de se mostrar superior, mas sim aprender com ela para se aprimorar como escritor.

Já Nietzsche, anos antes, buscava uma cultura que atingisse o sublime na sua forma mais pura, algo que ele achou que teria encontrado em Wagner. Ele criticava vários autores alemães como vazios ou pequeno-burgueses, e exaltava Wagner em contraposição a isso, até que começou a perceber em Wagner o mesmo calculismo pequeno-burguês que via nos outros. Então, nos estágios finais de sua loucura, dirigiu um ataque pesado contra Wagner, que pelo que sei, foi amplamente ignorado. Ele foi útil durante a ascensão de Wagner, seu aplauso sendo contado na ascensão do autor, e quando Wagner, já estabelecido, começou a revelar o pior de seu caráter, sua palavra não teve mais efeito algum: ele se tornou um apito mudo.

Maior efeito tiveram os trabalhos de crítica feitos por Lênin e Trotsky durante a Revolução Russa. Esses ensaios esparsos, que no caso de Trostky, chegaram a gerar um livro inteiro, não eram um mero passatempo para eles, mas serviam de maneira a discutir questões nacionais muito maiores. Digna de nota é a posição de ambos em relação a arte. Embora desde aquela época houvesse uma cruel perseguição contra opositores pela polícia secreta, eles advogavam que não devia se impor uma arte socialista única, mas permitir o livre experimentalismo por parte dos artistas, para que eles mesmos, através de seus grupos e coletivos, descobrissem as melhores formas de expressão. Essa liberdade durou mais ou menos até o começo dos anos 30, quando, após Stálin assumir, se impôs ferreamente uma nova arte que tentava imitar pateticamente os estilos clássicos.

Durante minha faculdade, tive contato com Harold Bloom. Li a Ansiedade da Influência, e achei maravilhosa a maneira que ele definia que cada autor tentava se afirmar em relação a um Cânone estabelecido. Porém, percebia nele certas coisas desagradáveis, que o impediam de avançar. Ele tinha criado um termo chamado ‘’Escola do Ressentimento’’, que era um antecessor do que viria a se chamar de ‘’identitarismo’’, ou ‘’esquerda woke’’. Essa ‘’Escola do Ressentimento’’ , como ele chamava, podia incluir qualquer um que não defendesse ferreamente os clássicos e seguisse teóricos que ele não levava a sério, o que incluía praticamente qualquer pensador do século XX em diante, com exceção dos poucos que ele gostava. Eu fiquei especialmente impactado pela maneira que ele descrevia JK Rowling.

Ele falava da escrita dela da forma mais pejorativa possível, como se ela não tivesse mérito algum. Esse era um ataque ainda mais cruel do que a ‘’esquerda woke’’ veio a fazer contra ela quando ela assumiu posições transfóbicas. Pode se presumir que Bloom devia ter posições semelhantes contra Stephen King, Tom Clancy, Agatha Christie, ou qualquer outro autor que as pessoas gostem sem autorização dele. Apesar de respeitar o trabalho dele, acredito que o fanatismo dele em relação ao que chamava de Cânone acabava sendo repressivo e contraproducente.

Tive algum pouco contato com o trabalho de Roger Ebert e Rubens Ewald Filho. Pelo que lembro, eram dois homens de grande erudição e que buscavam fazer comentários equilibrados, e que além disso tentavam achar alguma coisa que desse para elogiar mesmo nos piores filmes. Li citações de Ebert na internet, e percebi que ele tinha um humor bastante sarcástico para resumir alguns dos filmes que criticava, fossem bons ou ruins. O trabalho dele é muito lembrado nos Estados Unidos até hoje, assim como o de Ewald é em nosso país.

Terminando esta carta, gostaria de citar uma obra muito interessante: ‘’Tudo que é sólido desmancha no ar’’, de Marshall Bermann. Assim como Lenin, Trostky, e Nietzche, ele executou nessa obra um trabalho de crítica literária, que tinha por fim ser muito mais do que crítica literária. Ele falou ali sobre a construção da identidade moderna, comentando sobre o Fausto de Goethe, sobre literatura russa, sobre arquitetos americanos, e variados outros temas. Li esse livro durante meu ensino médio, e o devorei com muito interesse.

O tema central do livro, acredito, é a identidade faustiana da pessoa moderna, um tema levantado anteriormente por Spengler, um autor alemão, que acredito o tomou de Nietzsche e Schopenhauer. A luta central do ser faustiano é que apesar de viver numa sociedade motivada pelo lucro ou pelo fetiche do poder que o lucro encarna, ele deseja sinceramente fazer o bem, porém esse bem acaba sendo infectado pela busca do lucro, o Mefistófeles que tenta levar Fausto ao inferno. Nossa sociedade sendo movida por essa contradição, boa parte de nosso romance moderno se tornou tomada por esse tema, algo que o crítico deveria levar em consideração.

Terminando aqui, gostaria de parabenizar a entidade pelos seus anos de trabalho, e agradecer pelos seu esforço em prol da cultura nacional. Se vocês contam com um amigo como o Wagner (o nosso Wagner, não o do Nietzsche!), é porque o que vocês estão fazendo vale a pena.

Grande abraço, e saudações,

Nicolas Oliver

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