
Me
inscrevi para o PIBID em 2014. Naquela época, eu já estava
começando a ficar desesperado por bolsas estudantis. Tinha falhado
em variadas tentativas de arranjar emprego, e fazia alguns meses que
já tinha sido dispensado do estágio no Instituto Federal. A chamada
do PIBID tinha sido quase uma questão de sorte. Poucos estudantes
tinham podido se inscrever para o programa devido ao fato, de mesmo
entre as poucas pessoas que iam sobrando no curso a cada ano, boa
parte precisar trabalhar ou fazer outras atividades durante o turno
da manhã. Ainda assim, entre esses, eu era o menos qualificado,
devido ao meu histórico escolar bastante pífio e confuso, e por
isso fiquei na reserva da última vaga durante quase um ano, até uma
das pessoas que participavam ficar doente e precisar sair para se
recuperar. Esse fato, que era quase azar devido ao que ocorreu com a
colega que saiu, antecedeu outra questão de sorte, pois devido a
crise econômica e cortes de gastos que estavam ocorrendo no governo
em todos os níveis, a entidade mantenedora das bolsas científicas
ter congelado todos os planos de adicionar novos estagiários até a
economia se normalizar, ou seja, provavelmente quando eu já estivesse
com um pós-doutorado em outra graduação.
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Minha
entrada se deu pouco antes da realização de uma evento do PIBID na
faculdade, da qual participei como ouvinte, reconhecendo vários
colegas de outros espaços e até mesmo alguns bons amigos. Lá, pude
conhecer alguns detalhes do programa, do qual só ouvia falar, mas
nunca soubera como de fato funcionava. Professora P. era a
Coordenadora do programa para nosso curso, estando em contato com a
CAPES, nossa mantenedora; nossa Supervisora, em cujas aulas
deveríamos participar como assistentes de classe, era a Professora
C., do quadro da Instituição que estávamos lotados, o Colégio
Municipal JB. Tivemos algumas reuniões prévias, nas quais me
encontrei com os colegas que já estavam há mais tempo no Programa,
e ficou definido que eu ficaria lotado junto com Roberto, no lugar da
colega que tinha ficado doente, assistindo na primeira aula, do 8o
Ano; outras duas colegas da minha turma na faculdade, Pauline e
Tábata, eram responsáveis pela segunda aula, no 9o
Ano. Logo no primeiro dia de aula, pude perceber bastante semelhança
entre aquele lugar e minha experiência como bedel escolar pelo REDA,
num escola estadual da Pituba. Ambos eram pequenas escolas situadas
em ruas secundárias, com um corpo de alunos vindo essencialmente das
classes populares. Em ambas eu entrava vindo também de situações
profissionais críticas: no REDA, por querer ter dinheiro para estar
na faculdade, e ter desculpa para sair de um curso profissionalizante
que não desejava terminar, no PIBID, após algum tempo matando
cachorro a grito após o fim do estágio.
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A
diferença, logo percebida, era a de que se os alunos eram mais
jovens nessa nova escola, eram muito mais difíceis de controlar,
devido a alguns fatores que logo se fizeram perceber. Durante
a atividade específica de teatro, parei para supervisionar os grupos
de alunos. Quando parei para supervisionar um dos grupos de meninos,
eles me pediram para fazer gestos e símbolos corporais, cujo
significado eu desconhecia mas intuí serem símbolos de gangues.
Eles foram bastante insistentes para que eu fizesse os símbolos,
algo do qual tentei me esquivar com não menos insistência, vendo
que alguns deles sacavam os celulares para tirarem fotos. Indaguei a
eles, discretamente se a escola era da ''Caveira'' ou do
''Escorpião'', e um deles me disse que o bonde da escola era
afiliado ao Caveira. Tremi por dentro. Numa viagem a Natal, no começo
do ano, tinha comprado um chaveiro de gosto bastante duvidoso, que
consistia num pequeno escorpião empalhado em resina plástica verde
fosforescente, e decidi não usá-lo em Salvador justamente devido a
possível conotação perigosa que poderia ter em nossas ruas.
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Mais
tarde, algo mais positivo: uma aluna, Karine, e um aluno, Pedro,
pareciam ter uma inclinação para o desenho, pois ficavam
desenhando em sala o que me pareceram croquis de moda. Na saída da
aula, quando questionei a Pedro se eles estavam de fato fazendo o que
eu pensava, ele desconversou dizendo serem desenhos comuns. Pedro é
um tanto achacado pelos colegas por, segundo eles, ser gay. Na
reunião de avaliação daquele dia, compartilhamos nossas
impressões. Profa. C. achou muito positivo eu ter percebido o gosto
de Pedro e Karine; ela me perguntou se seria possível fazermos
algo em relação a isto. Eu disse que meu irmão tinha formação em
design gráfico e que, se conseguíssemos escanear alguns trabalhos de
Karine e Pedro, eu talvez conseguisse pedir ao meu irmão que
realizasse algumas pequenas animações ou melhorias gráficas neles,
para uso em atividades de classe. Algumas aulas depois, fui informado
de que Pedro e outros dois alunos tiveram de ser transferidos as
pressas para outras escolas depois de terem recebido avisos de que
''seria melhor estudarem no bairro certo para
eles.''
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Cheguei
quando estava sendo realizada a ''formatura'' dos alunos para se
cantar o Hino Nacional: é uma das primeiras escolas em que estive em
que se realiza tal procedimento. A diretora o usa como uma tentativa
de instilar alguma disciplina e senso de ordem nos alunos, algo que
percebi desde o primeiro dia não ser muito efetivo, visto que eles
até chegam a ficar em fila e acompanhar alguns trechos do Hino, mas
porém não dão a mínima para aparentar algum acatamento á
solenidade da ocasião. O desafio, ou mais exatamente o pouco caso
dos alunos, com a autoridade dos professores e da Diretoria é uma
constante. A diretora constantemente é chamada ou sobe as salas para
resolver questões para as quais o poder dos professores é
insuficiente; mesmo quando um professor é incisivo ou enérgico com
um aluno ou grupo de alunos específico, geralmente o único efeito
disso é aumentar ainda mais a balbúrdia do resto da sala. Os alunos
tem uma cultura própria que operam largamente apesar da escola, que
parecem considerar mais como um lugar aonde os pais exigem deles que
fiquem um determinado período do dia do que de fato como um lugar
aonde possam aprender qualquer coisa. Era um sentimento que eu
próprio possuía até mesmo em relação a faculdade, mas nessas
crianças, que são basicamente da geração posterior a minha, ou na
verdade do século e milênio diretamente seguintes, esse sentimento
parece ser uma das motivações principais, comprovando o que li no
livro ''A
Nova Era Convergente'',
de Takeshi Imai: ''-
Anos 2000: As pessoas não tolerarão nem sequer mais pensar em
obedecer.''
Há, também, uma certa falta de empatia com a Direção da escola,
mesmo quando ela tenta motivá-los ao invés de contê-los: pouco
após o Hino, a diretora tentou falar com os alunos sobre um fato
ocorrido no dia anterior, que foi o triunfo dos garotos Lucas e
Orelha no programa musical ''Super Star'', veiculado na Rede Globo. A
diretora tentou mostrar a eles que Lucas e Orelha vieram de histórias
de vida talvez mais difíceis que as deles, mas que ainda assim,
querendo algo diferente e se dedicando muito, eles tinham conseguido
a vitória que obteram.
A
diretora disse a eles que a escola oferecia atividades extracurriculares que, ainda que não transformassem nenhum deles em
outros Lucas e Orelhas, permitiriam a eles desfrutarem de algo
diferente do que ''aparentava ser o mais fácil.'' Os alunos
escutaram, resignados, mas pareceram dar tanta importância ao que
ela dizia quanto tinham dado ao Hino.
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Algumas
semanas antes, quando eu estava na sala dos professores, lendo um
jornal após minha atividade, um dos professores, ao conversar
comigo, me felicitou por eu ter escolhido o curso que escolhi, e
falou que não faria, se tivesse minha idade de novo, um curso
voltado ao ensino.
''-Os
jovens de hoje não querem saber de nada. O modelo de vencer na vida
que eles tem hoje são os traficantes.-''
Não
tive resposta para o que aquelas palavras. Quando subimos para a
sala, a Profa. C. , após uma rápida atividade de ditado, realizou
com os alunos a atividade do roleplay. Sendo filmados com uma câmera
que a Profa. tinha trazido, eles encenaram, utilizando as cadeiras da
sala de forma a simular um ônibus qualquer de Salvador, os roteiros
que tinham redigido na aula anterior. Foram variados grupos, cada um
encenando pequenas esquetes sobre situações erradas praticadas por
algumas pessoas em coletivos. Nessa atividade, a necessidade da
professora controlar a sala foi muito menor: até mesmo os alunos
conhecidos por serem os mais irrequietos, estavam demonstrando um bom
engajamento na atividade. A professora me passou uma câmera
filmadora para filmar cada esquete para depois as gravações serem
editadas, e provavelmente transformadas num pequeno filme.
Para
tentar simular um tripé fixo segurando a câmera, me ajoelhei diante
da mesa e pus meus cotovelos apoiados no tampo, enquanto eu a
segurava filmando os alunos realizando suas apresentações. Mais ou
menos na segunda esquete, um dos alunos pediu para poder filmar
também. Olhei para a professora pedindo confirmação: ela foi um
tanto reticente, mas não chegou a dar um não definitivo; a câmera
era fácil de operar e a chance de ser perder qualquer filmagem era
pequena, mas ela não estava muito a fim de arriscar uma queda do
equipamento. Quanto a mim, não considerei que aquilo fizesse muita
diferença, e continuei a filmar, com o aluno ao meu lado. Quando estávamos nas últimas esquetes, percebi meu erro; debatia o tempo
todo sobre empoderamento na internet e na faculdade, mas quando um
aluno fez uma requisição simples para mim, eu não percebi que
bastaria ficar ao lado da câmera para evitar que ele a deixasse
cair, ou que outro aluno, querendo filmar também, acabasse
empurrando-a sem querer ou causando a deleção do material filmado;
quando fiz a oferta, o aluno, ressabiado, a recusou. Eu tinha jogado
fora a chance de deixar acontecer na prática o que debatia tanto em
teoria, e se aquele garoto se tornasse um cameraman da Globo ou do
National Geographic mais tarde, não teria muito a me agradecer.
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Pouco
tempo depois daquilo, eu tinha passado num concurso para trabalhar no
interior. Eu estava insatisfeito com a faculdade não apresentar
nenhum futuro profissional para mim, e desisti completamente do
curso, o que significava abrir mão da vaga no PIBID. Apresentei a
situação a Professora P., e ela me deu o formulário de
desistência. Eu tinha apresentado a ela e a C. , um projeto que
consistia em parte do presente texto como relato de experiência, que
não foi aceito. Meu projeto não envolvia nenhuma proposta de ensino
e apenas mostrava algo que já era óbvio. Eu apenas não consegui
raciocinar como conseguir fingir estar ensinando alguma coisa para
aquelas crianças, visto que nossa presença ali não estava
adicionando efetivamente nada ao nada que elas já tinham. Poucos
anos depois, quando passei em frente a escola, me disseram que ela
tinha sido fechada. O municipio basicamente tinha desistidio de
manter o que tinha se tornado um ponto de recrutamento do tráfico,
aonde o governo só mandava da sala da diretora e dos professores
para dentro. Minha saída daquela escola, para mim, foi uma das
primeiras vezes que senti que falhei com quem podia ajudar, antes de
eu aprender, anos depois, que existem muitos grandes problemas e não
dá para abraçar o mundo.
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Porém,
ainda assim me lembro de outra coisa positiva: quando levei um colega
do curso de Vernáculas para declamar poesia. Ele era o líder
informal do coletivo cultural que eu participava na faculdade. Vinha
de uma comunidade, e tinha toda uma ideologia baseada nisso. Eu o
tinha convidado para participar de uma das aulas, e ele foi, sem me
pedir sequer o dinheiro do ônibus. Ele declamou uma de suas
composições, e foi um dos poucos momentos que os alunos sequer
pararam para prestar atenção em alguém naquela escola. Minha
intenção era apenas trazer alguém para fazer o trabalho por mim e
me poupar de planejar mais uma aula, mas os alunos acabaram ganhando
muito mais do que isso. Acredito que meu colega conseguiu o que a
diretora não vinha conseguindo, mostrar que um deles poderia chegar
em algum lugar. Ele terminou a apresentação e foi pra casa,
acreditando estar cumprindo uma missão com os seus. O que ele fez
sozinho não impediu a escola de ser fechada, é claro, mas ainda
assim ele veio tentar. Eu estava a poucos meses de desistir da escola
e da faculdade por um emprego que eu achava que ia dar prumo em minha
vida, mas essa teimosia me marcou. Me fez ver que vale a pena ficar
pelo que vale a pena.