quarta-feira, 13 de abril de 2022

Admirável 1984

      

         Quando eu era adolescente, participei de um debate sobre as distopias 1984 e Admirável Mundo Novo. Eu lembro que falei, naquele momento, que éramos mantidos sob opressão de formas semelhantes a ambos os cenários. Na época, eu próprio não entendia muito bem o porquê, mas agora entendo.

         Começarei por Admirável Mundo Novo. Aquela obra descrevia a idiotização humana através da transformação do mundo num parque de diversões. De uma certa forma, é o que ocorre hoje. Os streamings nos oferecem mais séries e filmes do que somos capazes de absorver; os sites de compras nos vendem mais produtos do que somos capazes de consumir; o fast food, mais nutrientes do que somos capazes de processar. Somos mantidos sempre sob a sensação de que existe mais diversão no mundo que seríamos capazes de aproveitar, ao mesmo tempo que nos sentimos vazios por dentro, e resolvemos esse vazio com álcool, drogas, promiscuidade, etc.…

        Já em relação a 1984: as sociedades se dividem naturalmente em campos antagônicos, seja devido a política, religião, agremiações esportivas, etc… Os intelectuais orgânicos de cada campo domesticam seus apoiadores a odiarem ferrenhamente seus adversários e a idolatrar cegamente seus líderes, de forma a manter seus membros num estado constante de fúria homicida, porém sem jamais conseguir destruir completamente o inimigo, que sempre muda de forma. Cada campo ideológico funciona como uma Oceania em miniatura, com os eleitores regulares sendo os ‘’proles’’, os militantes comuns sendo o ‘’Partido Externo’’, e militantes mais avançados sendo o ‘’Partido Interno’’. O Grande Irmão, é claro, se trata do dirigente que os intelectuais desejam colocar ou manter no poder.

          Como essa realidade nos oprime? Primeiro: assoberbados de centenas de oportunidades diferentes que nenhuma pessoa teria jamais condições de processar, nos sentimos fracassados por não termos condições de aproveitar tudo o que existe. Segundo: somos doutrinados a odiar incondicionalmente pessoas que na verdade não são muito diferentes de nós, mesmo sendo ensinados na escola que a democracia é a convivência negociada do que é diferente. 
             
                Em resumo: tendo muitas escolhas, e a chance de trabalhar pouco por muito, acabamos tendo escolha quase nenhuma, e trabalhando muito por muito de poucas coisas; e, alegando defender a democracia e a liberdade das maquinações de nossos adversários, acabamos, juntamente a eles, destruindo a democracia e a liberdade que ambos dizemos prezar.

        Estamos remando a galé de nossa própria escravidão, porque a maneira que buscamos liberdade nos prende ainda mais a ela. Diante disso, fica a pergunta: como recuperarmos nossa humanidade? Como deixarmos de ser meras máquinas de consumir e odiar? É possível exercermos um consumo saudável e consciente? É possível participarmos da política, da religião, da ciência e da cultura, sem nos tornamos reféns dos mercadores de ódio? Não há respostas fáceis para essas perguntas. Eu mesmo não as sei. O que sei é, que procurando-as, de todo nosso coração, poderemos ter uma vida mais digna, uma vida sob nosso controle. Uma vida humana.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Resenha: O Império do Ouro Vermelho

Este livro, do jornalista francês Jean Baptiste Mallet, acompanha a moderna indústria do tomate, centrada em três países: Estados Unidos, It...