Fiquei sabendo agora a pouco da perda de Jayme Figura.
Isso termina uma era em Salvador. Me lembro de crescer vendo ele passando em meio aos carros e ônibus nas ruas centrais da cidade, andando em meio aos veículos como se fosse um deles. O que, coberto de latarias de metal, ele praticamente era, se você for pensar bem. Era o Transformer humano, um Dom Quixote sem cavalo. Ouvi inumeráveis lendas sobre como ele se tornou o que era. Diziam que ele era um cara muito rico, que passou a achar a riqueza sem propósito, antecipou a herança da família, e pegou o pouco que sobrou para morar num sarcófago no Pelourinho.
Outros diziam que era simplesmente um cara que entrou em surto, abandonou o emprego e passou a peregrinar nas ruas da cidade, sempre com o rosto coberto com a máscara de ferro do príncipe de Alexandre Dumas. Havia quem dissesse que ele era casado e a esposa não fazia objeção ou não tinha como se opor ao que ele fazia. Alguma ou nenhuma de todas essas histórias pode ser verdadeira, mas acredito que isso não seja o que de fato interessa. Cheguei a apertar a mão a dele uma vez, há muitos anos, numa lanchonete. Não me lembro se ninguém sequer cobrava o que ele pedia. Ele apertava as mãos de todos, fazia mesuras respeitosas para as moças. Era saudado pelas pessoas, respondia os conhecidos, e em pouco tempo, continuava sua saga soteropolitana. Provavelmente nunca vamos saber porque ele realizava sua performance, ou se sequer encarava seu ato como performance e não como outra coisa. Isso permanecerá debaixo da máscara.
O que nunca esquecerei é de como até os ônibus tentavam adequar suas rotas para evitar machucá-lo, como se máquinas carregando mais de 40 pessoas em pé e 60 pessoas sentadas fossem menos importantes que um simples andarilho, que seguia seu caminho metálico enquanto as outras pessoas circulavam dentro de caixas de metal e de vidro. Ele poderia estar tentando dizer alguma coisa, ou apenas achava legal andar com uma armadura completa debaixo de um sol de 40 graus. Que isso tenha mais propósito do que boa parte do que estamos fazendo, talvez tenha sido o que ele quis dizer o tempo todo. Adeus, querido Figura.