Parte do meu livro ainda em processo de edição, Cinzacombolinhasbrancas e outras fábulas empreendedoras. Ilustração por Cecília Reis.

O tanque de água da praça era o ponto de encontro de todos os pássaros. Ali se encontravam os cucos, os tordos, as cotovias, os beija-flores após suas horas de trabalho, e mais importante, os numerosos e vicejantes pombos. Os pombos viviam competindo entre si para saber quem tinha o melhor arrulho (aquele som que se pode ouvir os pombos fazendo quando se chega perto deles: ‘’rut rut rut’’) da vila. Eles estavam com muita vontade de enviar um time para participar da Competição de Arrulho do Distrito. No time local, havia dois primos, Tinho e Zinho. Tinho, o mais velho, estava sempre discorrendo sobre seu elevado conhecimento da arte de arrulhar, tendo viajado por várias cidades ao redor do mundo (o mundo até a fronteira do próximo distrito, do outro lado do rio), conhecendo pombos de todos os lugares e seus arrulhos típicos, com seus dialetos e sotaques. Tinha também aprendido Teoria Arrulhal com um velho pombo aposentado que já tinha parado de arrulhar competitivamente.
-Primo, - dizia Tinho a Zinho uma vez ou outra, - seu arrulho é bastante bom para uma técnica tão simples e instintiva como a que você possui até o momento. Você aprendeu ouvindo o arrulho de outros colegas e compassando-o pelas gotas de água que ficam caindo do tanque para o chão. Para seu nível, isso é de fato excepcional, mas você nunca entenderá a verdadeira arte e ciência do arrulho em seu profundo significado cósmico e desdobramentos holísticos, visto que nunca a estudou do jeito que deveria ter sido verdadeiramente estudada. Eu, por minha vez, possuo o pequeno defeito de nunca ter sido um arrulhador prático devido à grande concentração necessária para ser um afinado conhecedor do assunto. Mas algo eu garanto: comigo como treinador inquestionável do nosso time, aliando minha cultivada capacidade crítica ao seu florescente talento atávico, e o carisma que você projeta sobre o resto do time, penso que podemos prevalecer sobre adversários com muito mais tradição, e, sem dúvida, voltaremos como o melhor time de arrulho e treinador de todo o distrito e quiçá do Estado.
-Que assim seja primo. - respondia, pacientemente, Zinho.
Quando o dia da grande competição se aproximou, o time e seu confiante treinador se prepararam para voar para a cidade-sede, aonde chegariam bem a tempo de a competição começar. Antes de saírem, Tinho recomendou:
-Pessoal, vamos voar e ficar juntos. Uma vez, tio Ninho estava nas ruas da capital, meditando sozinho a sua obra-prima que poderia garantir a primeira vitória de nossa vila na competição, mas um gato pulou sobre ele a partir de uma direção não prevista, e sumiu rapidamente com seu corpo para nunca mais ser visto. Vamos vencer, para honrar a emérita história de nossa municipalíssima vila, e a saudosa memória de nosso grande tio Ninho, querido irmão de alguns de nossos pais e filho de nossos amados avós, e além do mais nosso parente próximo!-
Os outros membros de time e os frequentadores do tanque deram vivas e o time partiu, voltando após alguns dias. Traziam alegremente uma Menção Honrosa, o primeiro prêmio efetivamente ganho pela vila. Os dois primos, porém, voltaram muito diferentes: enquanto Zinho estava falador e faceiro, sempre disposto a conversar com os que vinham lhe felicitar pela vitória, Tinho aparentava estar chateado e envergonhado, sem querer falar com ninguém. Zinho dizia para quem quisesse ouvir, que sem Tinho eles não teriam tido a performance que tiveram, enquanto andava orgulhosamente com a Menção Honrosa no peito, acompanhado pelo resto do time. Tinho evitava fazer o mesmo, e chegou até a censurar o primo uma vez, de forma discreta, mas veemente, por ser muito orgulhoso. Passada a surpresa inicial com o prêmio, todos ficaram ainda mais curiosos com a mudança de Tinho, e começaram a questionar Zinho sobre o que de fato aconteceu na capital, visto que Tinho respondia a todas as perguntas com evasivas. Os outros pássaros confiaram a um beija-flor com o qual Zinho treinava voo estático, a tarefa de fazê-lo revelar mais detalhes. Após uma das aulas, Zinho, cansado de esconder o que não lhe parecia um grande segredo, acabou contando:
-Em todos os times tivemos de fazer nossos arrulhos individualmente, um após o outro, depois de uma pequena dissertação de cada treinador sobre as peças de arrulho selecionadas para seus competidores. Os outros treinadores fizeram apresentações curtas e concisas, que todas juntas não deram o tempo de meia peça de arrulho. Primo Tinho, porém, sobrerrepresentou todos eles. Fez uma grandiosa apresentação, demonstrando o talento natural de nosso time comparado a artificiosidade dos outros, e falou sobre como seu duro trabalho intelectual aprimorou o atavismo de nossas performances como indivíduos e como grupo, em arrulhos perfeitos executados da maneira mais primorosa e correta. Após isso, dentro do tempo que tinha sobrado após o discurso de primo Tinho, nós executamos o toque de chamada de nossas peças, e aguardamos a pontuação dos juízes. Chegamos a ouvi-los falar entre si sobre conhecerem Tinho das antigas viagens que ele fez as vilas e cidades deles, e depois, por alguma razão, fazerem todos expressões de aborrecimento que nos amedrontaram. Chegamos até mesmo a achar que seriamos desclassificados ou punidos de alguma forma. Porém no final, quando os vencedores dos três primeiros lugares receberam suas medalhas, os juízes fizeram uma declaração nos concedendo unanimemente a Menção Honrosa por termos conseguido apresentar ao menos nossos toques de chamada tendo primo Tinho como treinador. -
Após a explicação de Zinho, Tinho foi tão ridicularizado na própria vila, após já ter sido humilhado na competição, que voou para longe, seguindo uma esquadrilha de gansos que estava migrando para o Norte. Após algumas gerações, aprimorando os métodos de Ninho e Zinho, o time da vila eventualmente chegou a ganhar um 4º lugar, e passou a conseguir se manter regularmente na segunda divisão. Mas aquilo que todos mais se lembravam, com saudade, foi de quando conseguiram um prêmio que não foi dado nem aos melhores times, graças tão somente a reputação de seu treinador.