sábado, 13 de janeiro de 2024

No PIBID

Me inscrevi para o PIBID em 2014. Naquela época, eu já estava começando a ficar desesperado por bolsas estudantis. Tinha falhado em variadas tentativas de arranjar emprego, e fazia alguns meses que já tinha sido dispensado do estágio no Instituto Federal. A chamada do PIBID tinha sido quase uma questão de sorte. Poucos estudantes tinham podido se inscrever para o programa devido ao fato, de mesmo entre as poucas pessoas que iam sobrando no curso a cada ano, boa parte precisar trabalhar ou fazer outras atividades durante o turno da manhã. Ainda assim, entre esses, eu era o menos qualificado, devido ao meu histórico escolar bastante pífio e confuso, e por isso fiquei na reserva da última vaga durante quase um ano, até uma das pessoas que participavam ficar doente e precisar sair para se recuperar. Esse fato, que era quase azar devido ao que ocorreu com a colega que saiu, antecedeu outra questão de sorte, pois devido a crise econômica e cortes de gastos que estavam ocorrendo no governo em todos os níveis, a entidade mantenedora das bolsas científicas ter congelado todos os planos de adicionar novos estagiários até a economia se normalizar, ou seja, provavelmente quando eu já estivesse com um pós-doutorado em outra graduação.

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Minha entrada se deu pouco antes da realização de uma evento do PIBID na faculdade, da qual participei como ouvinte, reconhecendo vários colegas de outros espaços e até mesmo alguns bons amigos. Lá, pude conhecer alguns detalhes do programa, do qual só ouvia falar, mas nunca soubera como de fato funcionava. Professora P. era a Coordenadora do programa para nosso curso, estando em contato com a CAPES, nossa mantenedora; nossa Supervisora, em cujas aulas deveríamos participar como assistentes de classe, era a Professora C., do quadro da Instituição que estávamos lotados, o Colégio Municipal JB. Tivemos algumas reuniões prévias, nas quais me encontrei com os colegas que já estavam há mais tempo no Programa, e ficou definido que eu ficaria lotado junto com Roberto, no lugar da colega que tinha ficado doente, assistindo na primeira aula, do 8o Ano; outras duas colegas da minha turma na faculdade, Pauline e Tábata, eram responsáveis pela segunda aula, no 9o Ano. Logo no primeiro dia de aula, pude perceber bastante semelhança entre aquele lugar e minha experiência como bedel escolar pelo REDA, num escola estadual da Pituba. Ambos eram pequenas escolas situadas em ruas secundárias, com um corpo de alunos vindo essencialmente das classes populares. Em ambas eu entrava vindo também de situações profissionais críticas: no REDA, por querer ter dinheiro para estar na faculdade, e ter desculpa para sair de um curso profissionalizante que não desejava terminar, no PIBID, após algum tempo matando cachorro a grito após o fim do estágio.

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A diferença, logo percebida, era a de que se os alunos eram mais jovens nessa nova escola, eram muito mais difíceis de controlar, devido a alguns fatores que logo se fizeram perceber. Durante a atividade específica de teatro, parei para supervisionar os grupos de alunos. Quando parei para supervisionar um dos grupos de meninos, eles me pediram para fazer gestos e símbolos corporais, cujo significado eu desconhecia mas intuí serem símbolos de gangues. Eles foram bastante insistentes para que eu fizesse os símbolos, algo do qual tentei me esquivar com não menos insistência, vendo que alguns deles sacavam os celulares para tirarem fotos. Indaguei a eles, discretamente se a escola era da ''Caveira'' ou do ''Escorpião'', e um deles me disse que o bonde da escola era afiliado ao Caveira. Tremi por dentro. Numa viagem a Natal, no começo do ano, tinha comprado um chaveiro de gosto bastante duvidoso, que consistia num pequeno escorpião empalhado em resina plástica verde fosforescente, e decidi não usá-lo em Salvador justamente devido a possível conotação perigosa que poderia ter em nossas ruas.

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Mais tarde, algo mais positivo: uma aluna, Karine, e um aluno, Pedro, pareciam ter uma inclinação para o desenho, pois ficavam desenhando em sala o que me pareceram croquis de moda. Na saída da aula, quando questionei a Pedro se eles estavam de fato fazendo o que eu pensava, ele desconversou dizendo serem desenhos comuns. Pedro é um tanto achacado pelos colegas por, segundo eles, ser gay. Na reunião de avaliação daquele dia, compartilhamos nossas impressões. Profa. C. achou muito positivo eu ter percebido o gosto de Pedro e Karine; ela me perguntou se seria possível fazermos algo em relação a isto. Eu disse que meu irmão tinha formação em design gráfico e que, se conseguíssemos escanear alguns trabalhos de Karine e Pedro, eu talvez conseguisse pedir ao meu irmão que realizasse algumas pequenas animações ou melhorias gráficas neles, para uso em atividades de classe. Algumas aulas depois, fui informado de que Pedro e outros dois alunos tiveram de ser transferidos as pressas para outras escolas depois de terem recebido avisos de que ''seria melhor estudarem no bairro certo para eles.''

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Cheguei quando estava sendo realizada a ''formatura'' dos alunos para se cantar o Hino Nacional: é uma das primeiras escolas em que estive em que se realiza tal procedimento. A diretora o usa como uma tentativa de instilar alguma disciplina e senso de ordem nos alunos, algo que percebi desde o primeiro dia não ser muito efetivo, visto que eles até chegam a ficar em fila e acompanhar alguns trechos do Hino, mas porém não dão a mínima para aparentar algum acatamento á solenidade da ocasião. O desafio, ou mais exatamente o pouco caso dos alunos, com a autoridade dos professores e da Diretoria é uma constante. A diretora constantemente é chamada ou sobe as salas para resolver questões para as quais o poder dos professores é insuficiente; mesmo quando um professor é incisivo ou enérgico com um aluno ou grupo de alunos específico, geralmente o único efeito disso é aumentar ainda mais a balbúrdia do resto da sala. Os alunos tem uma cultura própria que operam largamente apesar da escola, que parecem considerar mais como um lugar aonde os pais exigem deles que fiquem um determinado período do dia do que de fato como um lugar aonde possam aprender qualquer coisa. Era um sentimento que eu próprio possuía até mesmo em relação a faculdade, mas nessas crianças, que são basicamente da geração posterior a minha, ou na verdade do século e milênio diretamente seguintes, esse sentimento parece ser uma das motivações principais, comprovando o que li no livro ''A Nova Era Convergente'', de Takeshi Imai: ''- Anos 2000: As pessoas não tolerarão nem sequer mais pensar em obedecer.'' Há, também, uma certa falta de empatia com a Direção da escola, mesmo quando ela tenta motivá-los ao invés de contê-los: pouco após o Hino, a diretora tentou falar com os alunos sobre um fato ocorrido no dia anterior, que foi o triunfo dos garotos Lucas e Orelha no programa musical ''Super Star'', veiculado na Rede Globo. A diretora tentou mostrar a eles que Lucas e Orelha vieram de histórias de vida talvez mais difíceis que as deles, mas que ainda assim, querendo algo diferente e se dedicando muito, eles tinham conseguido a vitória que obteram. A diretora disse a eles que a escola oferecia atividades extracurriculares que, ainda que não transformassem nenhum deles em outros Lucas e Orelhas, permitiriam a eles desfrutarem de algo diferente do que ''aparentava ser o mais fácil.'' Os alunos escutaram, resignados, mas pareceram dar tanta importância ao que ela dizia quanto tinham dado ao Hino.

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Algumas semanas antes, quando eu estava na sala dos professores, lendo um jornal após minha atividade, um dos professores, ao conversar comigo, me felicitou por eu ter escolhido o curso que escolhi, e falou que não faria, se tivesse minha idade de novo, um curso voltado ao ensino.

''-Os jovens de hoje não querem saber de nada. O modelo de vencer na vida que eles tem hoje são os traficantes.-''

Não tive resposta para o que aquelas palavras. Quando subimos para a sala, a Profa. C. , após uma rápida atividade de ditado, realizou com os alunos a atividade do roleplay. Sendo filmados com uma câmera que a Profa. tinha trazido, eles encenaram, utilizando as cadeiras da sala de forma a simular um ônibus qualquer de Salvador, os roteiros que tinham redigido na aula anterior. Foram variados grupos, cada um encenando pequenas esquetes sobre situações erradas praticadas por algumas pessoas em coletivos. Nessa atividade, a necessidade da professora controlar a sala foi muito menor: até mesmo os alunos conhecidos por serem os mais irrequietos, estavam demonstrando um bom engajamento na atividade. A professora me passou uma câmera filmadora para filmar cada esquete para depois as gravações serem editadas, e provavelmente transformadas num pequeno filme. Para tentar simular um tripé fixo segurando a câmera, me ajoelhei diante da mesa e pus meus cotovelos apoiados no tampo, enquanto eu a segurava filmando os alunos realizando suas apresentações. Mais ou menos na segunda esquete, um dos alunos pediu para poder filmar também. Olhei para a professora pedindo confirmação: ela foi um tanto reticente, mas não chegou a dar um não definitivo; a câmera era fácil de operar e a chance de ser perder qualquer filmagem era pequena, mas ela não estava muito a fim de arriscar uma queda do equipamento. Quanto a mim, não considerei que aquilo fizesse muita diferença, e continuei a filmar, com o aluno ao meu lado. Quando estávamos nas últimas esquetes, percebi meu erro; debatia o tempo todo sobre empoderamento na internet e na faculdade, mas quando um aluno fez uma requisição simples para mim, eu não percebi que bastaria ficar ao lado da câmera para evitar que ele a deixasse cair, ou que outro aluno, querendo filmar também, acabasse empurrando-a sem querer ou causando a deleção do material filmado; quando fiz a oferta, o aluno, ressabiado, a recusou. Eu tinha jogado fora a chance de deixar acontecer na prática o que debatia tanto em teoria, e se aquele garoto se tornasse um cameraman da Globo ou do National Geographic mais tarde, não teria muito a me agradecer.

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Pouco tempo depois daquilo, eu tinha passado num concurso para trabalhar no interior. Eu estava insatisfeito com a faculdade não apresentar nenhum futuro profissional para mim, e desisti completamente do curso, o que significava abrir mão da vaga no PIBID. Apresentei a situação a Professora P., e ela me deu o formulário de desistência. Eu tinha apresentado a ela e a C. , um projeto que consistia em parte do presente texto como relato de experiência, que não foi aceito. Meu projeto não envolvia nenhuma proposta de ensino e apenas mostrava algo que já era óbvio. Eu apenas não consegui raciocinar como conseguir fingir estar ensinando alguma coisa para aquelas crianças, visto que nossa presença ali não estava adicionando efetivamente nada ao nada que elas já tinham. Poucos anos depois, quando passei em frente a escola, me disseram que ela tinha sido fechada. O municipio basicamente tinha desistidio de manter o que tinha se tornado um ponto de recrutamento do tráfico, aonde o governo só mandava da sala da diretora e dos professores para dentro. Minha saída daquela escola, para mim, foi uma das primeiras vezes que senti que falhei com quem podia ajudar, antes de eu aprender, anos depois, que existem muitos grandes problemas e não dá para abraçar o mundo.

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Porém, ainda assim me lembro de outra coisa positiva: quando levei um colega do curso de Vernáculas para declamar poesia. Ele era o líder informal do coletivo cultural que eu participava na faculdade. Vinha de uma comunidade, e tinha toda uma ideologia baseada nisso. Eu o tinha convidado para participar de uma das aulas, e ele foi, sem me pedir sequer o dinheiro do ônibus. Ele declamou uma de suas composições, e foi um dos poucos momentos que os alunos sequer pararam para prestar atenção em alguém naquela escola. Minha intenção era apenas trazer alguém para fazer o trabalho por mim e me poupar de planejar mais uma aula, mas os alunos acabaram ganhando muito mais do que isso. Acredito que meu colega conseguiu o que a diretora não vinha conseguindo, mostrar que um deles poderia chegar em algum lugar. Ele terminou a apresentação e foi pra casa, acreditando estar cumprindo uma missão com os seus. O que ele fez sozinho não impediu a escola de ser fechada, é claro, mas ainda assim ele veio tentar. Eu estava a poucos meses de desistir da escola e da faculdade por um emprego que eu achava que ia dar prumo em minha vida, mas essa teimosia me marcou. Me fez ver que vale a pena ficar pelo que vale a pena. 

 

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